Tradição: entenda como surgem os nomes nas embarcações
Written by on 25 de junho de 2023
Quando sai do município de morada rumo aos 30 dias de pesca, o pescador Jesiel dos Santos Barbosa, 53 anos, segue guiado pelo nome grafado na embarcação, ‘Profecia’. Mais do que uma identificação, o nome escolhido para batizar um dos sete barcos pesqueiros da família leva consigo a mensagem que acompanha a tripulação durante toda a pesca e posterior comercialização do pescado na Pedra do Peixe, no Ver-o-Peso. Os nomes escolhidos para batizar as embarcações de pesca artesanal guardam muito da identidade daquela comunidade e, sobretudo, levam mensagens cheias de significado que flutuam sobre as águas.
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Natural da comunidade de Caracará, no interior do município de Cachoeira do Arari, no arquipélago do Marajó, Jesiel lembra que nem sempre os nomes dados às suas embarcações foram os usados hoje. No passado, os nomes escolhidos para batizar os barcos faziam referência ao seu apelido, Mero. Com o tempo, porém, ele encontrou um motivo especial que norteia até hoje os nomes de cada uma das sete embarcações da família. “Depois que eu aceitei Jesus, passei a colocar esses nomes nas minhas embarcações. Tem a ‘Projeto de Deus’, essa barca é a ‘Profecia’, que também faz referência a Deus porque tudo que ele profetizou, aconteceu. Então, foi um nome dado pela prosperidade que representa”, conta. “Eu deposito a minha fé em Deus, que é quem dá sentido para todas as coisas”.
A temática religiosa não é incomum quando se dedica a analisar as nomenclaturas dadas às embarcações pesqueiras que navegam pelos rios do Pará. O interesse pelo assunto levou a professora Ellen Cristina da Silva Corrêa a investigar a relação entre a escolha dos nomes dados às embarcações especificamente no município de Bragança, onde a cultura pesqueira é muito presente. Entre as diferentes motivações que levam à escolha dos nomes, a religiosidade e as crenças estão muito presentes. “Muitos fatores contribuem para a escolha do nome, a religiosidade, as superstições, as crenças, os costumes. A embarcação é uma espécie de carta que conta a história desse sujeito, que conta a história desse pescador, desse dono de embarcação. E a gente percebe isso de várias maneiras”.
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A pesquisa desenvolvida por Ellen resultou na dissertação de mestrado “Navegar é preciso: diagnóstico das embarcações pesqueiras, relações sociais e saberes incutidos na carpintaria naval paraense”, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Antrópicos na Amazônia (PPGEAA) do campus Castanhal da Universidade Federal do Pará (UFPA) e que está vinculada ao Laboratório de Pesquisa e Extensão Pesqueira de Comunidades Amazônicas (LABPEXCA), do campus Bragança.
Na época do desenvolvimento da dissertação, a professora morava em São João de Pirabas, que fica próximo à Bragança, município que concentra muitos estaleiros onde se constroem e consertam embarcações, o que facilitou a pesquisa. A relação dela com o universo da pesca, porém, vem da infância e, de certo modo, as histórias contadas por seu avô e seu pai, ambos pescadores, despertaram o interesse sobre o simbolismo que os nomes dados às embarcações carregam consigo. “O meu avô foi pescador durante toda a vida dele, e o meu pai era pescador também junto com o meu avô. Eles moravam numa vila que faz parte do município de Colares, a vila de Mocajatuba”, lembra. “Então, o meu pai sempre contou sobre a vida dele como pescador, sobre tudo que ele aprendeu com o meu avô e, principalmente, sobre uma embarcação que foi muito importante para o meu pai e para o meu avô, que era a ‘Brasileira’”.
Segundo os relatos do avô e do pai de Ellen, a ‘Brasileira’ foi uma embarcação muito importante na comunidade de Mocajatuba nas décadas de 60 e 70 por ser a única que viajava para águas mais distantes. Sempre que seu pai falava sobre a embarcação, a força empregada pelo nome chamava a atenção. “O meu pai conta isso com um brilho nos olhos: a ‘Brasileira’, com essa força do nome, chegava ali e movimentava todo aquele lugar, ela fazia a dinâmica daquela comunidade. Ela levava muito peixe e o que sobrava do que eles levavam para comercializar, eles distribuíam, então ela era muito importante não só para o meu pai e para o meu avô, mas para toda a comunidade”.
Mais tarde, quando ela decidiu pesquisar essa relação nas embarcações de pesca artesanal de Bragança, observou que, muitas vezes, o próprio desempenho conquistado com a pesca é atribuído à sorte que, de certa forma, é invocada pelos nomes dados aos barcos.
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Em uma das entrevistas realizadas, ela ouviu de um dono de embarcação que também é construtor de embarcação em Bragança, que a sua produção mudou depois que ele passou a adotar determinado nome em um de seus barcos. “Ele tinha uma embarcação que o nome era “Las Vegas” e ele conta que teve muito prejuízo com essa embarcação, toda vez que a embarcação ia para o mar, voltava sem nada, até que uma vez ela foi para o fundo e ele decidiu se desfazer daquela embarcação”, lembra Ellen. “Então, ele construiu outra embarcação e decidiu colocar o nome ‘Deus me ajude’. E ele disse que foi incrível, que quando ele colocou a ‘Deus me ajude’ para navegar, todas as viagens que ela fazia vinham com muita produção”.
A professora usa o exemplo do relato dado por um dos entrevistados pela pesquisa para ilustrar o quanto a religiosidade é vinculada ao ato de nomear as embarcações, assim como as superstições, os costumes. “Ele considera que, de alguma maneira, aquele nome ‘Las Vegas’ trouxe azar para ele por representar uma cidade onde tem muitos jogos de azar”.
Outra relação muito presente, é referente às relações afetivas e vivências do pescador. “Nomear uma embarcação não é simplesmente colocar o nome de forma aleatória num pedaço de madeira. Para a população de Bragança vai além disso, é realmente uma extensão da sua vivência, é demonstrar ali a sua afetividade, então, surge essa nomeação muito baseada nas relações afetivas e parentais. O mesmo nome que ele dá para um filho, ele dá para a sua embarcação, então, muitas carregam os nomes dos filhos, dos netos, às vezes os nomes das esposas”.
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Letras têm simbolismo
Além dos profissionais responsáveis pelas reformas ou construções das embarcações, há ainda a figura do abridor de letras, o profissional responsável por pintar os nomes nos barcos. “Em Bragança existe essa categoria específica que é o abridor de letras de embarcações pesqueiras e eles também têm as suas percepções sobre o ato de nomear as embarcações. Conversando com um abridor de letras, ele me falou sobre uma embarcação que ele colocou o nome de ‘Canção Nova’. Ele disse que foi a embarcação mais bonita que ele já abriu nome”, lembra a professora.
Mais do que o significado dado aos nomes, a estética artística da grafia também diz muito sobre a identidade das comunidades ribeirinhas amazônicas. Nas letras grafadas com cores vivas e expansivas está preservado um universo estético que também conta uma história, a de comunidades ribeirinhas da região amazônica. Desde 2004, o trabalho desenvolvido pelos abridores de letras é pesquisado e mapeado pelo projeto Letras que Flutuam, que surgiu a partir de uma monografia realizada pela pesquisadora Fernanda Martins para a Especialização no Instituto de Ciências da Arte (ICA) da UFPA.
Professora da faculdade de Artes Visuais da UFPA, a designer Samia Batista conta que o trabalho de mapeamento é permanente, com o objetivo de chamar a atenção para essa estética ribeirinha representada pelas letras. “Se a gente for imaginar, a letra de barco é como a nossa culinária e a nossa música. Ela é uma representação cultural de um lugar e de um modo de viver”.
Samia conta que, durante os mapeamentos realizados, e que resultaram em dois documentários, foi possível observar que a letra decorativa amazônica, é um fenômeno da calha do Rio Amazonas. “A gente percebe que quanto mais o lugar está preservado, por exemplo, das mídias, mais ricas são as letras. Aqueles lugares em que a mídia é muito presente, em que se tem mais acesso a modelos externos, minimalistas, a letra começa a ficar mais pobre porque os artistas entendem que eles têm que se adequar a uma estética global”, considera.