Ribeirinhos do Xingu ficam sem peixe após Belo Monte

Written by on 9 de outubro de 2022

Andrelino do Nascimento, 46, teve cancelada a carteira de identificação como pescador, intoxicou-se cuidando da plantação de cacau e deve R$ 10 mil em impagáveis contas de energia elétrica.

Na casa de Raimundo Gomes, 59, estão cortados TV, aparelho de som, freezer e micro-ondas. Enquanto espera por reassentamento, ele recebe R$ 900 por mês —e perde a saúde dia a dia. 

Josiel Juruna, 29, abandona cada vez mais o peixe com farinha, característicos da dieta dos jurunas na Terra Indígena Paquiçamba. No lugar, entram a mortadela e o macarrão instantâneo.

A numerosa família de Raimundo Martins, 58, também come bem mais mortadela e ovo, e bem menos peixe. Os filhos já não passam os dias no rio Xingu, mas em diárias de serviço a fazendeiros da região.

Andrelino, Josiel e os dois Raimundos têm em comum o fato de serem pescadores sem peixes para pescar. O funcionamento da usina hidrelétrica de Belo Monte, na região da Volta Grande do Xingu, no Pará, matou o rio, como esses pescadores constatam todos os dias.

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Não há mais reprodução de peixes, diante de um controle artificial da vazão de uma liberação de água insuficiente.

Seis anos após começar a funcionar, e três anos após o início de funcionamento de todas as suas unidades geradoras, Belo Monte impõe uma mudança radical na vida de milhares de pessoas que tinham rotinas e modo de se situar no mundo associados à riqueza biológica do rio Xingu.

Não há mais qualquer sinal de fartura. O hidrograma adotado na vazão de água liberada a partir do represamento para o funcionamento da usina— é insuficiente para a pesca como subsistência, e os pescadores não se adaptaram a outras atividades, como a plantação de cacau ou a criação de peixe em tanques. Assim, as famílias empobreceram e vivem em insegurança alimentar.

A constatação foi feita pela Folha nas comunidades diretamente impactadas pela usina, a maior hidrelétrica em território exclusivamente brasileiro, em termos de capacidade de geração de energia ainda que só tenha atendido 5% da demanda nacional em 2021.

A realidade encontrada pela reportagem coincide com o que está descrito num documento oficial, mais especificamente um parecer técnico do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) de 24 de junho deste ano.

O parecer de 181 páginas analisa se a Norte Energia na companhia que reúne diversas empresas e que é a responsável pela operação de Belo Monte– cumpre as condições estabelecidas para que a usina possa funcionar. Entre elas, está a necessidade de mitigação dos efeitos do represamento, da formação de reservatórios e do controle da vazão de água na vida dos pescadores.

Belo Monte teve os primeiros estudos de viabilidade elaborados na ditadura militar, na década de 1970. O governo Lula (PT) viabilizou as primeiras licenças, e as obras se deram no governo Dilma Rousseff (PT). No primeiro ano do mandato, o governo Jair Bolsonaro (PL) concluiu as unidades geradoras e inaugurou o conjunto completo.

Durante a campanha nestas eleições, Lula disse que faria Belo Monte de novo e que só um terço do projeto original foi posto em prática na gestão petista, o que reduziu os impactos.

A usina afetou dezenas de comunidades ribeirinhas e terras indígenas na região do médio Xingu. O Ibama, no parecer em junho, concluiu que os pescadores precisam receber reparação em dinheiro em razão dos “períodos de atraso e interrupções nas ações de mitigação”.

A indenização deve se referir a um período de dois anos e dois meses e chegar inicialmente a 785 famílias.

Integrantes do MPF (Ministério Público Federal) em Altamira (PA) calculam que mais de 4.000 pescadores foram impactados pela usina. Na conta estão incluídas as comunidades ribeirinhas onde viviam, as terras indígenas e os reassentamentos urbanos e rurais criados para abrigar os deslocados pelo empreendimento.

Belo Monte funciona, desde 25 de novembro de 2021, com uma licença de operação com prazo de validade vencido. A renovação é responsabilidade do Ibama, cuja equipe técnica condicionou a renovação à apresentação de uma proposta de reparação em dinheiro aos pescadores, num prazo de 60 dias.

A Norte Energia, que tem na composição acionária Eletrobras, Petros, Funcef, Neoenergia, Vale, Sinobras, Light, Cemig e J. Malucelli Energia, diz considerar, por sua vez, que a licença de operação da usina está em vigor, nos termos da lei, até que ocorra decisão do Ibama sobre o pedido de renovação.

Em resposta à Folha, a Norte Energia afirmou ainda que coube aos pescadores a preferência por indenização, em vez de “projetos produtivos”. Essa exigência foi feita pelos trabalhadores em audiência pública do MPF em agosto.

“A solicitação foi registrada pela Norte Energia e encontra-se em análise interna”, diz a empresa. “Ações mitigadoras e de reparação são aquelas voltadas à organização e fortalecimento dos grupos atendidos, buscando privilegiar ações de apoio à manutenção das atividades de forma sustentável. A nova proposta será submetida ao Ibama e à categoria de pescadores.”

O parecer do Ibama descreve uma multitude de consequências do adoecimento do rio por Belo Monte. As ariranhas estão sem peixes e competem com lontras por comida. A proporção sexual de tracajás foi alterada, com predominância de fêmeas. Tartarugas estão menores. De 2012 a 2021, 41 toneladas de peixes foram retiradas do rio sem vida.

“A pesca local, em qualquer das modalidades, vem passando por um processo de degradação”, afirmam os técnicos do Ibama no parecer. “Esse fenômeno vem erodindo a capacidade dos pescadores de gerar rendimentos econômicos satisfatórios através de sua atividade, bem como de obter pescado como fonte principal de proteína animal na mesa de suas famílias.”

Na ilha do Itapiranga, existia peixe em abundância, lembram Andrelino e a mulher, Adriana Ribeiro da Silva, 36. “Em três dias, eram seis caixas de peixe onde a gente morava. Ontem, aqui, a gente saiu para pescar e voltou com três curimatás”, diz ela.

Retirados de casa com a informação de que o lugar ia “afundar”, o casal e os quatro filhos foram levados para uma casa numa área rural, próxima das margens do rio Xingu. Eles tentam manter a pesca como fonte de subsistência, mas isso já não garante nada.

Recorreram a plantações de cacau, mas, com falta de experiência e técnica, dos 3.000 pés restaram mil, e Andrelino se intoxicou com veneno usado para matar o capim.

A banana também não vingou. “A gente é pescador, não é agricultor”, afirma.

A família está endividada e não enxerga saída. Andrelino e Adriana tomam remédios para depressão, doença com a qual convivem desde 2014. “Eu sinto desgosto por essa usina. A gente vivia tão bem. Agora a gente vive pior do que cachorro”, diz ela.

Raimundo Gomes também deixou o beiradão no Xingu onde vivia com a família, em 2012, 35 anos depois de ter chegado ao lugar, chamado Costa Júnior. “Fui expulso. Tive minha propriedade queimada.”

O pescador foi levado para uma casa na periferia de Altamira, num dos RUCs (reassentamentos urbanos coletivos) criados para abrigar os deslocados por Belo Monte. Raimundo espera por reassentamento num lugar próximo ao rio que lhe garanta a possibilidade de ser pescador. Enquanto isso não ocorre, recebe uma verba mensal de R$ 900.

“Sonho com isso. Mas estou desacreditando. Eles precisam desapropriar áreas de fazendeiros poderosos”, diz o pescador, que enfrenta as consequências de um AVC, da doença de Parkinson e da depressão.

Ele mora sozinho no RUC. As filhas buscaram outros rumos. Neste ano, ainda não saiu para pescar. “Se eu conto a minha vida, eu conto a vida do meu vizinho. Perdemos o rio.”

Na Terra Indígena Paquiçamba, os indígenas abandonaram o mergulho tradicional em busca de peixe ornamental. Já não encontram as espécies antes habituais.

O fator decisivo para desistirem do mergulho foi a morte do irmão de Josiel Juruna. Ele conta que o irmão passou a mergulhar em águas mais profundas, diante do desaparecimento de espécies. Num dia, não retornou à superfície. Foi um trauma para as aldeias todas.

Os jurunas tentam incrementar a renda com tanques de criação de peixes. A atividade, porém, vem se mostrando pouco exitosa até agora.

“A solução é mais água, não adianta. Isso garantiria a reprodução dos peixes, e teríamos nossa alimentação de volta”, diz Josiel, responsável por uma medição independente do nível do rio e da reprodução dos peixes na terra indígena.

“O normal era o rio encher em novembro, dezembro, e os peixes chegavam de janeiro a março para reprodução. Agora, com a vazão adotada, o rio não enche o suficiente de novembro a fevereiro. Quando chega água suficiente, em abril, já não é a época certa da reprodução”, resume.

Raimundo Martins, que precisou deixar uma das primeiras vilas no Xingu desalojadas pelo projeto de Belo Monte, a Santo Antônio, concorda. “O rio acabou. Não dá mais. As piracemas acabaram tudo, não tem mais onde o peixe desovar.”

Ele, a mulher e sete filhos foram para uma comunidade mais próxima ao rio, a Bambu. Ainda pescam, mas não há peixe para todo mundo.

É por isso que um grupo de pescadores da vila Belo Monte, o vilarejo de onde foi retirado o nome da usina, defende um descanso para o rio, para ver se ele renasce. Enquanto não pescam, uma verba de reparação compensaria o alívio ao Xingu, defendem Sara Rodrigues, 38, e o pai, Valeriano Rodrigues, 64.

Sara, Valeriano e familiares ainda insistem na pesca. Saem de barco pela Volta Grande e, diante da falta de água nos períodos secos, precisam arrastar e deslizar o barco por pedregulhos. Por terem que deslocar a embarcação dessa forma, a Norte Energia passou a remunerar ribeirinhos e indígenas com essa finalidade exclusiva.

Essa etapa dura de três a quatro horas por corredeira. Para tentar pescar alguma coisa, levam dois dias.

“Antes, não era assim, mesmo nos períodos mais secos”, diz Sara. “Tem sete anos que a gente não sabe o que é uma piracema.”

Sobre a quantidade de água destinada para a Volta Grande do Xingu, a Norte Energia afirma que isso foi objeto de estudo e previsão no licenciamento ambiental.

“Ficou estabelecida a alternância de vazões que simulam o pulso natural do rio Xingu, visando assegurar a manutenção da qualidade da água, da conservação da ictiofauna, da vegetação aluvial, dos quelônios, da pesca e da navegação, além dos modos de vida da população na região”, diz.

A empresa diz que “cumpre rigorosamente os compromissos estabelecidos no âmbito da concessão e do licenciamento ambiental”. Relatórios periódicos enviados ao Ibama mostram isso, segundo a Norte Energia. O Ibama não respondeu aos questionamentos da reportagem.

A Norte Energia afirma ser transparente também na informação ao Ibama sobre mortandade de peixes. Ainda conforme a empresa, a taxa de consumo de peixe pelos ribeirinhos está acima das médias nacional e mundial, e um incremento de renda levou a uma elevação das famílias para a linha acima da pobreza.

O processo de reassentamento das famílias está em curso, e 121 já foram reassentadas, conforme a resposta à reportagem.

“A Norte Energia promoveu assistência técnica a projetos de psicultura, fortalecimento da pesca, lavoura de cacau, extrativismo vegetal”, diz.


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