Burton: Wandinha feminista e fim do politicamente correto
Written by on 20 de novembro de 2022
Tim Burton já lidou com lobisomens e vampiros em
“Sombras da Noite”. Com um internato para adolescentes sobrenaturais
em “O Lar das Crianças Peculiares”. Uma investigação criminal esteve
no centro de “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” e sangue jorrava aos
montes de “Sweeney Todd”. Já “Peixe Grande e suas Histórias
Maravilhosas” era movido pela relação de pais e filhos.
Foi talvez por achar que o cineasta estaria em terreno
familiar que os criadores da nova série “Wandinha” chamaram Burton
para dirigi-la. Um derivado do clássico televisivo “A Família
Addams”, a produção curiosamente toca em vários temas que passaram por sua
carreira, carregando sua inconfundível marca gótica.
Em resumo, a trama acompanha a personagem das icônicas
trancinhas negras, após sua matrícula numa escola para crianças superdotadas e
criaturas lendárias. Uma série de assassinatos violentos, no entanto,
transforma Wandinha em detetive e, por maiores que sejam suas dificuldades, ela
reluta em pedir ajuda à mãe, ela própria ex-aluna da prestigiosa e estranha
Academia Nunca Mais.
Por mais que Burton não tenha criado ou roteirizado
“Wandinha” -ele dirige metade da temporada e atua como produtor
executivo-, é um exercício interessante encontrar pontos de encontro entre a
série e sua obra. Talvez porque, se voltarmos às raízes do cineasta, fica claro
que ele e “A Família Addams” sempre tiveram uma relação de
intimidade.
“As inspirações originais para o meu cinema foram os
quadrinhos criados por Charles Addams para a New Yorker. Eles são a primeira
coisa que eu lembro de ter visto e gostado na infância, com seus traços fortes
e o humor ácido”, diz Burton em conversa por vídeo.
“Depois eu cresci vendo a série e aí vieram os filmes
dos anos 1990. Mas eu não queria fazer uma nova adaptação, até ler esses
roteiros sobre Wandinha, minha personagem favorita. Eu compartilho a visão de
mundo dela e fazer essa série foi como voltar aos meus anos de escola”,
continua o cineasta, que pode muito bem ter sido uma versão masculina de Wandinha
em algum ponto da vida, com seu gosto pelo macabro e a notória tendência à
reclusão.
Para quem não se lembra, os quadrinhos e, depois, a série de
1964, acompanhavam uma família capaz de aterrorizar qualquer comercial de
margarina. Seu lar não era uma casa monotonamente bem cuidada, mas uma mansão
quase assombrada. Seus passatempos, em vez de jardinagem ou jogos de tabuleiro,
eram arrancar pétalas de flores e tortura. Os bichos de estimação poderiam
muito bem devorar um cachorrinho -eram jacarés ou leões.
Em resumo, o pesadelo para a classe média suburbana, cujos
ideais de família feliz causavam horror completo em Mortícia, a mãe, Gomez, o
pai, Chico, o tio, Tropeço, o mordomo, Feioso, o filho, e Wandinha, a filha. E,
claro, Mãozinha, um membro amputado que passeava pela casa e roubava a cena na
música tema do programa em preto e branco.
O humor dos personagens sempre veio desse choque entre
realidades, que abria espaço para piadas de duplo sentido e um sadismo que não
poupava críticas a ninguém. Em “Wandinha”, essa marca registrada se
manteve e, talvez, tenha sido elevada, já que a história é centrada no mais
fúnebre e insensível membro da família.
“Pessoas mortas são conhecidas por não retornarem
ligações”, diz a protagonista sobre um aluno desaparecido. “As redes
sociais são um vazio de afirmações insignificantes”, dispara em outro
momento. Um “Pinterest do Ted Bundy” é como uma amiga se refere à
decoração de seu quarto.
É um humor que não esbarrou em muitos problemas nas
encarnações anteriores dos Addams, mas que talvez incomode os espectadores mais
sensíveis de hoje em dia, num cenário cultural patrulhado pelo politicamente
correto, termo do qual Burton não é fã.
“Essa coisa toda do politicamente correto, tomara, vai
passar. Se você tira esse humor ácido e incorreto dos Addams, eles deixam de
ser quem são. Claro que há preocupação com algumas coisas, mas não podemos
tirar essa parte deles. As pessoas precisam entendê-los num sentido simbólico,
não literal”, diz.
“Hoje em dia os estúdios estão em pânico com isso. Você
não pode, por exemplo, brincar com a morte. Mas espera aí, estamos falando de
‘A Família Addams’. Eu vivo esse conflito há anos, mas as pessoas precisam
entender que se eu faço uma piada sobre suicídio, não estou querendo encorajar
nada.”
De fato, o politicamente correto talvez tenha sido um
empecilho para Burton alçar voo nos últimos anos, que foram de pouco prestígio
para um cineasta que já foi dos mais originais e excitantes de Hollywood. Seu
estilo, por exemplo, não funcionou bem com o felizes para sempre da Disney em
sua versão de “Dumbo”, que ficou aquém das expectativas.
Recentemente, ele disse que jamais trabalharia com a empresa
de novo e que sua experiência com ela foi como a do elefantinho voador, que
tentava escapar de um “grande circo horrível”.
Em “Wandinha”, ele parece estar à vontade para
contaminar a série com seu humor mórbido e o estilo gótico. Isso não quer
dizer, no entanto, que apelos comuns a essa mesma geração que advoga pelo
politicamente correto não tenham se infiltrado.
Com suas trancinhas ilusoriamente inocentes e os figurinos
pretos, a protagonista parece, nesta nova versão, se encaixar no papel de
heroína feminista. Não era uma preocupação que isso fosse ressaltado, explica o
cineasta, mas a questão é que ela sempre foi forte. “Quando você está
sendo quem realmente é, você não precisa ficar esfregando suas credenciais, de
feminista ou qualquer outra coisa, na cara dos outros”, diz.
Elogiada lá fora pela série e tida como uma das novas
promessas das telas, Jenna Ortega encarna essa Wandinha que, apesar de estar
sendo o que é, parece de fato mais poderosa, talvez por não ter que dividir o
protagonismo com outros parentes. Ela critica “ferramentas do
patriarcado” ao longo dos episódios e se vinga de valentões do colégio jogando
piranhas na piscina em que nadam.
Outra versão da personagem, Christina Ricci, que a
interpretou nos filmes dos anos 1990, faz aparições como uma professora de
olhos esbugalhados, do jeito que Burton gosta. O elenco fica completo com
Gwendoline Christie como a diretora da Nunca Mais, e Catherine Zeta-Jones e
Luis Guzmán como Mortícia e Gomez Addams, em alta voltagem sexual, embora com
pouquíssimas cenas.
“Wandinha”, afinal, é sobre as crises adolescentes
de qualquer outra série do gênero, mas pela lente fantasmagórica e
peculiarmente bem-humorada de Tim Burton. É como um “Elite” gótico,
para citar outra escola assombrada por crimes da Netflix.
Há uma protagonista que não se encaixa na vida escolar,
bailes de formatura e bullying, mas também um monstro à solta, terapias de
conversão para lobisomens e um mistério à la “Scooby-Doo”, nas
palavras do cineasta.
WANDINHA
Quando: estreia nesta quarta (23), na Netflix
Classificação: 12 anos
Elenco: Jenna Ortega, Catherine Zeta-Jones e Luis Guzmán
Produção: EUA, 2022
Criação: Alfred Gough e Miles Millar