Rafael Monteiro, Guamá, TF, Belém: as imagens além da baía

Written by on 14 de setembro de 2022

“Esse rio é minha rua”, canção clássica de Paulo André e Rui Barata, está presente até hoje em inúmeras publicações em redes sociais com fotografias, vídeos e representações de Belém. A capital do estado do Pará, para muitos, ainda é registrada como uma cidade-porto, em que se pode circular na área urbana de ônibus, motos, carros e bicicletas, mas onde os barcos chegam e saem somente na baía do Guajará.

O fotógrafo paraense Rafael Monteiro, 35 anos, enxerga, de maneira atenta, além disso. Seus registros, feitos desde 2013, olham para uma urbanidade belenense que engloba a movimentação entre rios, dentro da própria cidade, não somente nos portos: “os barcos navegando no Tucunduba e o trânsito de bicicletas pela cidade são coisas que estão no meu cotidiano. Eu sou ciclista desde 2014, e também rodo de bike delivery, então o que tu vê nas fotos fazem parte de uma rotina diária. A bicicleta acaba me pondo em lugares onde outros fotógrafos não costumam ir. O deslocamento é uma constante, levo no bolso uma cybershot antiga e as vezes nem desço da bike que é pra não perder o movimento”, explica o artista.

A lógica urbana da movimentação da cidade é, ao mesmo tempo, objeto de atenção do artista e também uma das partes de seu processo de trabalho. Seu deslocamento de bicicleta e sua observação minuciosa o permitem notar e registrar trajetos fluviais dentro da cidade de Belém e outros elementos imagéticos pouco abordados dentro da fotografia paraense.  

Em “Sobre fotografia” (2004), a grande ensaísta Susan Sontag escreveu que “o fotógrafo é um superturista, uma extensão do antropólogo, que visita os nativos e traz de volta consigo informações sobre o comportamento exótico e os acessórios estranhos deles. O fotógrafo sempre tenta colonizar experiências novas ou descobrir maneiras novas de olhar para temas conhecidos — lutar contra o tédio”.

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Atento a isto, para além de uma extensão antropológica, nas obras do artista Rafael Monteiro dois bairros ganham relevo: a Terra Firme e o Guamá, onde ele vive desde pequeno, como um cenário para seus registros, sem um aspecto colonial do olhar de fora para dentro, muito menos uma percepção estereotipada daqueles que ali vivem e transitam. 

“A minha família mora no Guamá próximo ao canal do Tucunduba. Fica bem na fronteira com a Terra Firme, são uns 35 anos morando por aqui, então de certa forma eu transito de um lado pro outro do canal desde a infância, seja pra visitar minha avó que mora do lado de lá, ou pra comprar algo na feira da TF”, sintetiza. Sua experiência ali durante quase 4 décadas é crucial para a percepção da complexidade de elementos que ele aborda dentro de um mesmo espaço.

Nas margens do canal do Tucunduba, o fotógrafo se debruça em uma variedade de imagens, que vão de canoas motorizadas (também conhecidas como rabetas) cortando o rio em alta velocidade, garças pousadas nas suas águas calmas, bicicletas passando pela ponte acima do canal, até barcos maiores ancorados por baixo delas e pessoas circulando em caminhos cotidianos.

Isto me lembra o antropólogo Michel Agier, que escreve em seu livro “Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos” (2019), que a cidade é feita de interações e não são os limites físicos que as restringem. O pesquisador conclui que que regiões citadinas podem ter uma pluralidade de aspectos dependendo do dia, hora e momento em que ocorrem as interações e que nesse processo, há uma série de identidades relativas que rompem as fronteiras, para além das linhas imaginárias da geografia.

Ora, na obra de Rafael Monteiro, é possível observar a pluralidade de aspectos da paisagem. Um mesmo local, para o artista, tem diferentes representações, distintos momentos, variados fluxos, que ele registra cada um de forma compenetrada, distante dos clichês da fotografia de cidades amazônicas. 

Para nossa felicidade, Rafael comenta que uma de suas metas é continuar pensando a cidade em seus trabalhos: “Eu penso que a maioria, senão todos que trabalham com arte, de alguma forma, querem que seu trabalho chegue o mais longe e que alcance o maior número de pessoas possíveis. A periferia de Belém tem uma cultura muito rica, qualquer um que beber nessa fonte tem assunto para uma vida inteira, então posso dizer que meu objetivo, por ora, é aprofundar nesse trabalho que já vem sendo feito com foto e mais pra frente produzir uns vídeos pra esse povo poder falar também”, afirma o fotógrafo.

Para nosso regozijo, não é difícil constatar que foi-se o tempo em que eram visibilizados na cidade apenas aspectos engendrados por artistas “mainstream”, que por vezes pouco circulam dentro dela, ficando restritos a nichos e observações. Hoje, é tempo de outros fazedores de arte, que como Rafael Monteiro, nos presenteiam com trabalhos tão enriquecedores e vigorosos sobre a capital paraense, mostrando que Belém vai além da baía e de uma cidade-porto. Estes rios são nossas ruas e vão além: na cidade, percorrem múltiplos caminhos: sinuosos, instigantes, encantadores e complexos e por isso estes fluxos merecem mais atenção, possibilitando mais e novas observações obre a cidade e a nossa Amazônia. 

Texto especial para o DOL gentilmente cedido por PV Dias, artista visual que nasceu em Belém do Pará, e atualmente vive no Rio de Janeiro.

O artista é graduado em Comunicação Social, mestre em Ciências Sociais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e tem formação pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no programa Formação e Deformação do ano de 2019. Sua pesquisa versa sobre a estruturação das imagens de um território e em possíveis rasuras nessa estruturação. Junto a essa frente, inicia-se também um trabalho sobre intervenções em violências coloniais dos lugares por onde o artista percorre captando registros sobre lugares que se dividem entre Amazônia e o sudeste do Brasil.

Seu trabalho foi capa da primeira antologia poética da Revista Cult. Já trabalhou em colaboração com o instituto novaiorquino Creative Time e, recentemente, teve obras selecionadas para a SP Arte, foi selecionado para incubadora DAO, de Portugal e expôs seus trabalhos em A NAVE, durante o Rock In Rio. 

Sua obra integrou o primeiro projeto de animação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), a série AniMAM. PV possui obras nas Coleções do Museu de Arte do Rio – RJ e Museu D’Água – PA e, em agosto deste ano, lançou sua primeira exposição internacional, na Suíça, com curadoria de Danniel Tostes, e parceria com Fatima Wegmann e a também paraense Mayara Yamada.


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