Belém: saiba mais sobre o antigo Presídio São José
Written by on 5 de novembro de 2023
Na Belém dos anos 1930, as brincadeiras lideradas pela pequena e peralta Terezinha no entorno da tradicional Praça Amazonas, no bairro do Jurunas, tinham como cenário de fundo a fachada da construção que, à época, abrigava o Presídio São José.
Em meio à rotina do centro da cidade, a população que morava e transitava pelo local convivia pacificamente com o antigo presídio, até que uma sangrenta rebelião ocorrida em 1998 pôs fim ao uso da edificação como local de privação de liberdade para infratores.
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Hoje com 92 anos de idade, a aposentada Therezinha da Luz Maia tem muito vivas na memória as histórias vivenciadas na infância, quando foi vizinha do presídio. Ela conta que morava na esquina da Praça Amazonas com a rua Arcipreste Manoel Teodoro, bem de frente para o São José. E era ali que ela comandava as mais diversas brincadeiras.
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“Eu gostava de empinar papagaio. Eu ia lá pros Tamoios (Rua dos Tamoios) atrás de papagaio e quando eu passava pelo lado do presídio, os presos estavam na janela. Eles gritavam: ‘Ei, garota! Vai pedir pro teu pai uma carteira de cigarro’”, recorda até hoje. “Eu voltava, entrava na mercearia, mas não falava com o meu pai, falava com o funcionário e pegava a carteira de cigarro”.
Em uma dessas ocasiões, Terezinha lembra que foi até o presídio na intenção de levar a carteira de cigarro para ser entregue aos presos. Ao invés disso, porém, ela acabou encrencada. “Eu fui no presídio e falei com o administrador. Eu disse, ‘Abílio, divide essa carteira de cigarro com os presos’ e ele dizia “Terezinha, tu vais já para a tua casa porque eu sei que tu ias pros Tamoios atrás de papagaio. Eu vou escrever um bilhete para a dona Edwigens dizendo pra onde tu ias, Terezinha”, conta, sorrindo com as lembranças da infância.
Na época em que o gás que abastecia os fogões das casas ainda advinha do antigo gasômetro e o transporte público dependia do bonde elétrico, Terezinha cresceu livre no entorno da Praça Amazonas e lembra com saudade daquela época.
“Eu gostava porque lá eu brincava de pira, eu pulava corda, eu jogava ficha na parede e quem ganhava ficava com o dinheiro. O dinheiro antigamente era a carteira de cigarro vazia, era como dinheiro naquela época. De noite a gente sentava lá na praça e já estavam os copos e o dinheiro e tinha um senhor que vendia mingau à noite que vinha do Jurunas e quando ele chegava na esquina da Conselheiro com a Praça, ele gritava ‘mingau da noite!’ e a gente se alvoroçava. Ele vendia todo o mingau dele”, recorda.
“Tinha uma vacaria. Eles vinham com a vaca, chegava na porta da gente e a mamãe com aquela panela. Aí tiravam o leite direto do peito da vaca e depois ela fazia uma coalhada que era uma delícia. Era tranquila a cidade, a gente andava na rua sem ninguém roubar a gente. Aquele tempo não volta mais”.
As recordações da infância tendo um presídio como vizinho também são tranquilas para a aposentada Ruth Helena Henriques Rodrigues, 65 anos, que ainda mora na rua que fica ‘aos fundos do antigo presídio’, referência que ela usa até hoje.
“Eu fui criada aí. Eu ia para a missa com a minha mãe, com a minha avó. O quarteirão aqui era todo limpo porque os presos limpavam, acompanhados pelos guardas. Eles fabricavam móveis de madeira, carrinho de madeira que eram vendidos. Até um tempo atrás a gente ainda tinha uma cama de madeira que foi feita por eles ali”.
Parte das recordações da engenheira agrônoma aposentada estão registradas também em jornais da época em que o São José ainda recebia muitos internos. Na edição do DIÁRIO de 26 de janeiro de 1990, uma matéria informa sobre a inauguração de uma fábrica de sacos plásticos no Presídio São José, com capacidade para produzir 38.400 unidades mensais.
Segundo a reportagem, a produção destinava-se aos próprios estabelecimentos penais, sendo os excedentes colocados à venda no mercado, com renda revertida para os internos. Além das sacolas plásticas, a produção industrial dentro do presídio também incluía a fabricação de vassouras, artesanato em madeira e itens de marcenaria, como bem recorda Ruth Helena.
Durante grande parte do tempo, Ruth lembra de uma convivência amena com o presídio, mas o cenário mudou a partir do dia 28 de fevereiro de 1998, quando ocorreu a mais famosa rebelião do local. “Era tranquila a convivência. Eu tive toda uma vida aqui no entorno do presídio. Só foi ruim quando teve aquela rebelião do Ninja. A minha casa tinha um portão de madeira e umas 16 vidraças. Eles (os presos) quebraram umas nove, atirando de lá do presídio pra cá. Lá de cima a gente via eles sufocando os outros, tudo encapuzados. Era horrível”, recorda.
“Como o meu irmão morava lá para perto do aeroporto, no Promorar, nós fomos para lá, passamos uma semana pra lá até as coisas acalmarem. No dia que a gente veio para pegar roupas, a gente entrou com escolta. É triste, né, a gente ver esse tipo de coisa”.
Antes que se tornasse palco da rebelião que pôs fim ao seu uso como local de privação de liberdade, o prédio que hoje abriga o Espaço São José Liberto teve vários usos desde que foi construído ainda em 1749. O primeiro uso como cadeia pública, porém, se deu já no século 19, a partir de 1843.
Doutor em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e coordenador do curso de história da Universidade do Estado do Pará (Uepa), o historiador Telmo Renato Araújo explica que, primeiramente, o presídio funcionou em um prédio que servia como convento dos religiosos da Piedade, construído pelos missionários franciscanos sob a invocação de São José, daí o nome atribuído a ele.
“Depois, o prédio foi ocupado pelo governo e teve diversas funções, tais como: quartel, batalhão de pedestre, esquadrão de cavalaria, corpo de artilharia e hospital, até se tornar prisão em 1843, recebendo a denominação de presídio e, posteriormente, de cadeia pública. Em 1893, o então governador Lauro Sodré amplia a área do antigo convento, transformando o prédio em uma prisão fechada”.
O professor explica que, ainda na sua origem, o presídio estava localizado em uma região afastada do centro urbano. “O caminho percorrido pelos presos em seu primeiro contato com o edifício era pela Estrada de São José, que ligava as freguesias da Campina e Cidade até a freguesia da Trindade, onde estava localizado o prédio. A estrada era entrecortada por diversos alagados que caracterizavam o seu entorno”, explica.
“Estudos indicam que os presos eram conduzidos ao presídio em meio a castigos severos, com uso de ferros ou calcetas – tipo de argola colocada no tornozelo de um prisioneiro – para impedir as tentativas de fuga, fato este que provavelmente tornava o trajeto mais demorado e punitivo”.
Ao longo dos vários anos em que funcionou como local de detenção, o presídio passou por várias situações de conflitos anteriores à mais recente rebelião que resultou na sua desativação, em 1998. O professor doutor Telmo Renato Araújo destaca um episódio ocorrido ainda no início do século 20.
“O presídio, ao longo de sua história, teve constantes rebeliões como a rebelião de 1912, liderada pelo “celebre gatuno” Quintino Antonio dos Santos. Fato inclusive relatado em uma matéria jornalística do jornal Estado do Pará em 6 de março de 1912”, aponta. “No motim foram encontradas em posse dos detentos inúmeras navalhas, facas, tesouras, canivetes que foram confiscadas pelas autoridades que administravam o presídio na época”.
Outra matéria publicada na edição do DIÁRIO de 07 de janeiro de 1990 registra o que a reportagem chamou de ‘assalto’ ao Presídio São José, quando quatro homens armados chegaram ao local, renderam funcionários da casa de detenção, e deram fuga a oito presos em plena tarde, por volta de 15 horas. Mais um episódio que registra que a aparente tranquilidade vivenciada pela vizinhança do lado de fora, não se repetia tão constantemente do lado de dentro dos muros do antigo Presídio São José.