Conheça os youtubers que fazem sucesso entre as crianças 

Written by on 12 de agosto de 2023

No deque de uma mansão com vista para as montanhas, um jovem manda um rap autobiográfico com a viseira virada para trás, evidenciando um topete bem armado. “Parecia brincadeira até bombar o primeiro/ Cem camadas de Oreo, mostrei pro Brasil inteiro/ Me sentia confiante e ao mesmo tempo esquisito/ Foi difícil acreditar quando tive um milhão de inscritos”, ele canta. No refrão, repetido duas vezes, o autor se revela com entusiasmo, espaçando as sílabas na batida da música: “E-NAL-DI-NHO”.

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Enaldo Lopes de Oliveira Filho, de 25 anos, é um fenômeno na internet. Representa uma nova geração de youtubers que inclui nomes como Bela Castro, Natan e o casal Rafa e Luiz, que cativam milhões de fãs, especialmente crianças e pré-adolescentes de 7 a 12 anos. Boa parte do sucesso destes novos ídolos vem de desafios e experimentos inusitados – como empilhar cem recheios de biscoito sem derrubar. São provas que testam a resistência e paciência de muitos pais, preocupados com o tempo que os filhos dedicam a assistir esse tipo de vídeo. Especialistas consultados minimizam o risco da repetição por parte dos pequenos (até por se tratarem de empreitadas tolas, quase sempre inofensivas), mas alertam que dedicar horas (e horas) a essa atividade pode ser prejudicial. Em resumo, eles dizem que vale o bom, velho e pré-digital adágio: “Aprecie com moderação”. E sob olho vivo dos pais.

A história do Oreo é real e aconteceu com Enaldinho em 2017. Inspirado em um vídeo americano em que se testava colocar cem camadas de esmalte na mesma unha, o mineiro de Belo Horizonte, ainda no ensino médio da escola, pensou em uma adaptação. O post em que ele e um amigo colocam entre as duas bandas de biscoito cem camadas de recheio foi a virada de chave do seu canal que, até então, nas suas palavras, estava “flopado” (gíria para algo que não vingou). Enaldinho foi dormir com cem mil inscritos e acordou com o dobro.

FORMATO

“O formato que fizemos era diferente do que se fazia aqui na época”, conta o youtuber em entrevista por chamada de vídeo, com a viseira que virou marca registrada. “Tinha um amigo meu filmando e interagindo comigo, a câmera era personagem. Quando acordei no dia seguinte e vi 200 mil inscritos, parti para outros vídeos na mesma linha. Cem camadas de mortadela no pão, cem camadas de hambúrguer… Passou um mês e eu tinha um milhão de inscritos. Foi a primeira vez que ganhei uns R$ 1,5 mil no YouTube.”

De lá para cá, Enaldinho engrenou numa crescente. Seu canal hoje beira os 30 milhões de inscritos, e seus vídeos acumulam quase 12 bilhões de visualizações (Anitta, por exemplo, tem pouco mais de sete bilhões). São títulos como “Passei a noite na casa da minha ex-namorada sem ela saber”, “24 horas comendo comidas azuis em ordem alfabética” e “Desvendando os 24 mitos que toda mãe conta pro filho”.

O jovem quase trilhou a carreira dos pais, que são médicos, mas seu canal começou a dar resultados bem no momento em que ele prestaria o vestibular. Na época, o olhar desconfiado de algumas pessoas diante de uma ocupação ainda cercada de dúvidas, a de youtuber, o motivou:

“Lembro que um amigo do meu pai uma vez estava na nossa casa e, sem saber que eu estava escutando, ele comentou que eu estava passando vergonha na internet. E ainda por cima ‘queimando’ o nome dele, que é o mesmo que o meu. Isso acabou comigo, me marcou. Mas continuei focado, trabalhando duro.”

ÁLBUM DE FIGURINHAS

Hoje, Enaldinho tem seu próprio álbum de figurinhas nas bancas, produtos e brinquedos licenciados, livros publicados, já se lançou no cinema com o filme “Enaldinho e o mistério da lagoa” e tem outros dois longas prontos na gaveta. Nos planos para o ano que vem, pretende lançar até rede de franquias de hamburgueria.

O sucesso, naturalmente, também é financeiro. Em um de seus vídeos, ele se desafia a gastar R$ 1 milhão em 24 horas. E cumpre, inclusive comprando um Porsche Panamera Híbrido de R$ 680 mil.

“Na última vez que encontrei aquele amigo do meu pai, ele estava com um livro meu para eu autografar para o enteado dele”, conta o rapaz. “Mas não julgo. Tudo era muito novo, ele não quis me diminuir. Passaram a respeitar quando viram brinquedo meu na loja, o carro que comprei.”

O canal dos youtubers Rafaella e Luiz Phellipe, ambos de 26 anos, do Rio, também são movidos por desafios – alguns com ar de superprodução, como o que entrou no ar recentemente. O vídeo “Sobrevivemos ao Triângulo das Bermudas com um barco de papelão” bateu quase 500 mil visualizações.

Pais na empreitada

Com quase 30 milhões de inscritos em seu canal, Enaldinho já virou filme, livro e brinquedo.

“Sempre buscamos algo diferente”, diz Luiz, que deixou de ser jogador de futebol por conta de lesões.

A esposa, que desistiu de tentar concursos públicos para seguir no YouTube, completa:

“É porque assim conseguimos chamar a atenção do público. A gente se inspira em canais de fora e tenta trazer alguns conteúdos para o Brasil, alguns difíceis de reproduzir. Demanda tempo e produção maiores”, explica Rafa.

O casal, que namora desde a época da escola, ele da Penha e, ela, de Olaria, na Zona Norte do Rio, tem mais de 21 milhões de inscritos no canal Rafa & Luiz. Hoje, mira na expansão da marca que eles levantaram juntos na internet.

“Temos muita vontade de ir para o cinema e para o streaming. A gente também quer fazer peça, teatro, contato com o público além do digital. Já temos livro publicado e estamos vindo com produtos licenciados”, enumera Rafa.

Enquanto alguns pais se preocupam com os filhos que querem ser youtubers, outros compram a ideia e fazem a coisa acontecer. No caso do curitibano Natan Lopes, 20 anos, seu pai e sua mãe ajudaram a formar uma equipe. Hoje, o canal “Natan por aí”, que existe desde 2017, tem quase 13 milhões de inscritos.

“Meus pais sempre me apoiaram desde o começo e criamos o canal em conjunto. Meu pai filmava e editava os vídeos. Minha mãe ajudava com a produção. Sempre fizemos roteiros juntos e discutimos ideias”, diz Natan, que mora em Florianópolis.

De Fortaleza, no Ceará, a youtuber Bela Castro também tem dentro de casa o seu braço direito na empreitada do canal “Bela bagunça”. A mãe a apoiou desde o início, quando Bela tinha 7 anos, em 2015. Hoje, aos 15, tem mais de 12 milhões de inscritos e soma mais de dois bilhões de visualizações nos seus vídeos. O conteúdo também mudou ao longo do tempo:

“Antes, eu contava historinhas. Hoje, o conteúdo está mais relacionado com o meu dia a dia, com a minha vida”, diz a jovem, que tem títulos como “Meu namorado me maquiando”, “Coloquei uma piscina na cama da minha mãe” e “Meu cachorro ganhou festa de aniversário surpresa”.

Bela diz que lê muito, é aficionada por psicologia e se mostra preocupada com uma questão da ordem do dia: a saúde mental do seu público, principalmente no que diz respeito ao tempo excessivo de exposição à tela de tablets e celulares.

“Tenho certeza de que o tempo de exposição à tela afeta muito nossa saúde mental, em todas as idades. Apesar de trabalhar com isso, sempre limito meu tempo de uso porque acredito que tem hora e local para tudo”, diz Bela.

“Engajamento viciante” pode causar danos

A preocupação da cearense Bela Castro com os excessos é legítima. Segundo o psicólogo Thales Ferro, especialista em dependências químicas e comportamentais, a exposição exagerada à tela, incluindo jogos eletrônicos, “aumenta a probabilidade de a criança desenvolver comportamentos compulsivos que trarão prejuízos” .

“Isto acontece pela estimulação do cérebro que libera um neurotransmissor chamado dopamina, associado à sensação de prazer e motivação”, explica o especialista. “Ao longo do tempo, o cérebro se adapta a este alto nível de dopamina, e a consequência pode ser a criança se sentir triste, ansiosa ou entediada sem aquele conteúdo.

Para o psicólogo Rodrigo Lyra, doutor em psicanálise pela UFRJ e especialista no atendimento com adolescentes, o problema não deve recair exclusivamente sobre os pais, mas deve ser tratado como uma questão de suma importância pela sociedade como um todo.

“Precisamos ser honestos: diante de uma tentação quase onipresente, as recomendações e estratégias genéricas são precárias e limitadas”, afirma Lyra. “Isso mostra que a busca de soluções não pode ser colocada apenas nos ombros de mães, pais e cuidadores, é preciso uma atuação mais forte da sociedade, através de suas instituições.”

A psicanalista Carolina Serebrenick, especialista no atendimento com crianças e adolescentes e integrante da Escola Letra Freudiana, destaca que o controle do uso de telas pelas crianças por parte das famílias “dá trabalho” e é preciso um olhar atento, no dia a dia, para combater o problema.

“É necessário que os pais tenham uma presença no cotidiano das crianças, compartilhem os programas e fundamentalmente proponham atividades interessantes, ao ar livre, na natureza, bem como outras formas de relação com a cultura”, explica. “É interessante que os pais estejam disponíveis para assistir ao que agrada aos filhos e troquem ideias a respeito do que estão vendo”.

Para Lyra, mais uma vez, a questão é outra: “Devemos atentar para a questão mais estrutural, que é a postura da sociedade diante de plataformas que organizam a própria experiência social através de critérios de engajamento viciante”.


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