Deus Tem Aids: filme educativo quer mudar retrato da doença
Written by on 1 de dezembro de 2022
Um inimigo a ser combatido. Assim é posicionado o
HIV nos áudios que ilustram o início de “Deus Tem Aids”, documentário
de Fábio Leal e Gustavo Vinagre que estreia nesta quinta-feira nos cinemas
brasileiros.
Os recortes sonoros, exemplos de matérias e colunas
gravadas há quatro décadas, acabam reforçando, inclusive por meio da repetição,
que o vírus “nasceu da promiscuidade sexual”.
“Por que as imagens que a gente vê hoje são
praticamente as mesmas de 40 anos atrás?”, perguntam os entrevistadores
fora de quadro, ainda no início do filme, a um dos personagens que irão compor
a narrativa. O homem, que segura um globo de disco em suas mãos, então hesita.
E o título surge em tela.
Pode ser útil fazer uma leitura de “Deus Tem
Aids” que toma como base a conversa. O próprio filme faz isso, no final
das contas. Acompanha pessoas soropositivas –precisamente, sete artistas e um
médico ativista– e as deixa confortáveis o suficiente para uma conversa franca
sobre o vírus e a doença, sobre vida e morte, sobre expectativas e
preconceitos.
A estratégia utilizada para o filme dar vazão a
personagens e histórias tão diversas também ajuda a entender as
particularidades dessa conversa. Afinal, o documentário não acompanha apenas o
testemunho dessas pessoas, no formato tradicional de uma entrevista. O trunfo
do filme talvez esteja em acompanhar também os processos artísticos das
personagens retratadas, registrando performances, peças, bordados, pinturas e
poemas, entre outras expressões.
No documentário, a arte, ao passo que não se
esforça para dar conta de toda a complexidade que envolve o tema, acaba
garantindo a possibilidade de múltiplas entradas e saídas, trazendo um toque de
dinamismo à conversa, para continuar na comparação sugerida, e possibilitando
uma experiência mais empática.
Numa das cenas, por exemplo, o filme registra uma
mulher negra que anda pelo espaço público da cidade de São Paulo com um
letreiro luminoso que pisca a sentença “eu não vou morrer”. Na sua
roupa, está carimbada a palavra “soropositiva”. Ela então se banha
numa bacia, como se lavasse o próprio corpo dos estigmas e preconceitos que os
olhares alheios lhe dirigem –nunca do vírus em si.
Noutra, um homem leva dois banquinhos para uma
praça e ergue um cartaz onde se lê o convite “vamos conversar sobre HIV e
Aids”. As pessoas que ali atravessam, sentam e compartilham suas próprias
experiências e dúvidas sobre o assunto acabam trazendo outras perspectivas para
a performance.
Permitem, dessa forma, o sucesso da proposta
educativa que o filme traz consigo e a possibilidade de imersão, ainda que
naturalmente limitada, em suas questões e angústias.
É especialmente significativo o corte que o filme
faz entre uma dessas conversas e uma cena de afeto. Na sequência em questão, um
dos artistas narra a sua dificuldade inicial de transar quando descobriu ser
uma pessoa soropositiva. Para ele, a situação mudou nos idos de 2016, quando a
ciência comprovou a equação “indetectável é igual intransmissível”
–ou seja, o fato de que uma pessoa com baixa quantidade de vírus no sangue,
resultado do tratamento, não transmite HIV.
Leal e Vinagre então exibem, logo a seguir, um
beijo entre dois homens filmado em primeiro plano. Carinho, intimidade e tesão
saltam daquele enquadramento, representação visual de que este é um filme sobre
vida; sobre corpos que se amam e que existem em plenitude.
“Eu quero criar imagens de pessoas
soropositivas gozando”, uma das entrevistadas diz. E o filme sublinha essa
vontade quando registra, sem pudor, uma performance que trabalha a imagem do
sangue, retirado do próprio corpo da artista, e o prazer do sexo anal, seja
consigo, seja com o outro. Orgasmo que liberta convenções e estereótipos, tal
como o título que, por chocar expectativas, também reforça compromissos
inadiáveis.
Ao fim, quando registra um homem nu dançando no
último andar de um prédio, “Deus Tem Aids” faz de sua narrativa uma
ode ao corpo. Ao corpo livre, expansivo, desnudo e performático, que come e que
dá, e que existe apesar daqueles que o preferem morto.
Não à toa, o filme ressalta, em seus letreiros
finais, o esforço do ainda presidente Jair Bolsonaro em esvaziar as políticas
públicas de combate à Aids. Mas prefere se encerrar com uma palavra de ordem,
que ressoa para além do cinema: “positivas vivas!”
Sempre vale lembrar: 1º de dezembro, dia de estreia
do filme, é a data que também marca o Dia Mundial de Combate à Aids. A estreia
do longa numa ocasião como essa reforça o compromisso e a contribuição de sua
narrativa para a luta.
DEUS TEM AIDS
Avaliação: Ótimo
Quando: Estreia nesta quinta (1º)
Onde: Nos cinemas
Classificação: 16 anos
Produção: Brasil, 2021
Direção: Fábio Leal e Gustavo Vinagre