Gaby Amarantos é assassina em longa que chega aos cinemas
Written by on 24 de novembro de 2022
Uma mulher
bem diferente da estrela de grandes shows, programas de TV, grandes públicos e
figurinos suntuosos – que se transforma numa assassina em série para acertar as
contas com o destino, sem temor nem piedade. Assim é a Gaby Amarantos com que o
espectador vai se deparar em “Serial Kelly”, longa do alagoano René Guerra que
ela protagoniza e que chega nesta quinta-feira aos cinemas brasileiros,
inclusive nas salas de Belém.
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O sotaque
também é bem diferente, já que Kellyane, a personagem que Gaby encarna, é
nordestina, uma cantora de forró eletrônico que viaja pelo interior do
Nordeste, deixando mortes por onde passa. Diretor e roteirista do longa, ao
lado de Marcelo Caetano, Guerra diz que começando a construir essa mulher, seu
rosto ainda “era uma incógnita”.
“Eu só sabia
que trabalharia com uma atriz que soubesse cantar, ou com uma cantora que
soubesse atuar. A escolha dependia muito disso. Mas quando encontrei com a
Gaby, olhei no olho dela, e tem a presença de onde veio, de onde está, para
onde vai, e para onde quer ir”, diz Guerra, sobre a força que precisava para a
personagem. “E a Gaby tem na performance dela muito de teatralidade, ela é uma
verdadeira aparelhagem viva (risos)”, define.
Ele também
justifica a escolha numa justaposição necessária entre as regiões Norte e
Nordeste, em contraponto ao Centro-Sul, que historicamente ditou as regras da
produção cultural. E defende: se o cenário de “Serial Kelly” é do interior das
Alagoas, há muito do Norte de Gaby sintonizado no filme, a ponto de dizer que
Kelly tem uma identidade “nordestista”. “Foi muito importante a mistura do sotaque
que ela construiu, mas ao mesmo tempo de uma estética do Pará, do Norte, que a
gente desconstruiu e reconstruiu no processo do filme. Eu tenho certeza que o
Pará está também no filme, tanto na figura dela quanto musicalmente. E o
Nordeste está nessa paisagem também, nesse atravessamento”.
A
visualidade do filme e especialmente a música que embala a história passam por
isso. Vão de Reginaldo Rossi a uma versão de “Psycho Killer”, do Talking Heads,
que na mão de Gaby vira a “Rapariga Cascavel”. Uma porção de exagero que, para
Guerra está no DNA do cinema latino-americano e que ele quis resgatar. “No
cinema tem uma fala que menos é mais. No Nordeste de Lampião, menos é morte. A
gente é barroco! A prefere acreditar no imaginário, porque é uma forma de
sobreviver também”.
Daí para
diante, o diretor se derrama em elogios para a performance de Gaby, que ele diz
ter mergulhado profundamente – e corajosamente – na construção do papel,
abdicando inclusive de turnês e outros compromissos para se dedicar aos
ensaios.
“Gaby
Amarantos é uma das pessoas mais maravilhosas de se trabalhar porque ela
mergulha profundamente nas coisas, além de ser extremamente disciplinada, de
ser uma mulher com personalidade, que cada vez mais tem atravessamentos que são
discursos que a gente está vendo aí, mas há cinco anos era tudo muito novo e já
estava nela, a questão da negritude, da autoestima da mulher negra, o machismo,
a igualdade salarial”, diz.
O fruto da
parceria de respeito e confiança é perceptível, diz ele. “Nenhum ator em nenhum
filme faz nada que não queria. As cenas estavam postas, agora o nosso diálogo
era baseado na confiança e nesse pacto de troca”.
Segundo Guerra,
a cantora contribuiu muito para a personagem, que passa adiante nesta espécie
de road movie com uma fúria interna que se coloca como força de resistência
diante de um mundo moldado por homens. É assim que ela surge, já nas primeiras
cenas, displicentemente comendo um churrasquinho, depois de fazer sua primeira
vítima, sobre quem dá de ombros ao ser questionada pela delegada Fabíola,
vivida por Paula Cohen.
“A Kelly,
ela transborda, ela é instinto puro, é uma personagem que eu posso considerar
amoral, e é assim para se defender dessa violência que atinge o corpo feminino.
Para algumas pessoas ela é uma vilã, para outras ela é heroína”, avisa o
diretor.
E é quando a
chave gira. Nesse tom de comédia meio ácida, em que situações absurdas vão se
enfileirando na vida de Kelly. Guerra diz que é possível tudo, menos rir dela.
Por baixo da superfície, como nas águas turvas em que ela deixa o primeiro
cadáver, o diretor diz que percebeu dentro da personagem uma solidão enorme,
que só se transforma nos encontros dela com outras mulheres. “Acho que esse
machismo estrutural não tem gênero, mas no caso do filme existe uma sororidade,
que essas mulheres compreendem umas às outras”.
“A gente luta pela liberdade de expressão
dentro da diversidade. É muito fácil a oposição das pessoas que não querem que
a gente seja livre, porque eles têm uma voz única, eles não contestam. Mas quem
é pró-diversidade, é também pró-opinião do outro. O filme não é moralista, ele
não quer falar sobre isso, mas fala. Tem uma fala [da Fabíola] que diz que ela
[Kelly] é só uma mulher. Ela não está diminuindo a Kelly, ela está dizendo que
esse aparato todo é machista. Ela diz por que tantas armas contra uma mulher
cuja única arma que possui é a voz?”