De Gabriela até Bacurau, Gal deu voz ao Brasil nas telas
Written by on 9 de novembro de 2022
“Eu vou fazer uma canção pra ela/ Uma canção singela,
brasileira.” Foram muitas as canções brasileiras que Gal Costa, morta
nesta quarta-feira, transformou com sua voz marcante e inconfundível. Os
versos, tirados de “Não Identificado”, dizem muito sobre a
onipresença da cantora também nas telas, que por mais de meio século a usaram
para dar voz ao país.
Composta por Caetano Veloso, um dos principais parceiros de
Gal na vida e no trabalho, “Não Identificado”, curiosamente, é o primeiro
e o último crédito da artista num grande filme. A estreia na telona foi em
1969, com “Brasil Ano 2000”, de Walter Lima Júnior, sobre um país
devastado após uma terceira guerra mundial.
A última foi com “Bacurau” -que deu a Juliano
Dornelles e Kleber Mendonça Filho o prêmio do júri em Cannes em 2019-, também
sobre um Brasil mergulhado em crise, mas desta vez por causa de anos e anos de
subserviência e exploração.
“Minha paixão há de brilhar na noite/ No céu de uma
cidade do interior/ Como um objeto não identificado”, entoava Gal já nas
primeiras imagens do longa, enquanto uma câmera voyeurista observava o globo
terrestre e se aproximava do Brasil de forma predatória.
Com os dois filmes, a baiana cantou diante das mazelas de
sua nação, foi às entranhas e tirou delas certa beleza, como poucas vozes
conseguem fazer. E isso mesmo que “Não Identificado” já estivesse lá,
existindo antes de qualquer roteiro.
A notória influência para uma revolução feminista e sexual
também pôs sua discografia no caminho de tramas que se debruçaram sobre os
temas. “Que Pena” embalou os delírios eróticos da jovem ninfomaníaca
de “A Mulher de Todos”, de Rogério Sganzerla, enquanto “London,
London” acompanhou as explorações sexuais do quarteto de “Uma Mulher
para Sábado”, de Maurício Rittner.
Engrossam a lista “Sua Estupidez”, na trilha de
“Eu Transo, Ela Transa”, de Pedro Camargo, “Love, Try and
Die”, em “As Delícias da Vida”, de Rittner novamente, “Mil
Perdões”, em “Perdoa-Me por Me Traíres”, de Braz Chediak, e
“Sol Negro”, no drama erótico americano “Orquídea
Selvagem”, estrelado por Mickey Rourke.
Em 1995, em “Terra Estrangeira”, de Walter Salles
e Daniela Thomas, deu vazão às lágrimas de Fernanda Torres, colunista deste
jornal, que também entoou, ela própria, versos de “Vapor Barato”.
Mas foi mesmo com Jorge Amado que Gal Costa brilhou nas
telas. Na adaptação de Nelson Pereira dos Santos para “Jubiabá”, ela
cantou “Lindinalva”. E, com Sonia Braga, aumentou a voltagem sexual
das personagens-título de “Tieta do Agreste” e “Gabriela”,
nos filmes dirigidos por Cacá Diegues e Bruno Barreto, respectivamente, e
também na novela da Globo sobre a última personagem.
“Eu nasci assim, eu cresci assim/ E sou mesmo assim,
vou ser sempre assim/ Gabriela/ Sempre Gabriela”, cantava Gal na icônica abertura
do folhetim de 1975, nos versos que se infiltraram na memória coletiva do
brasileiro e foram repetidos na refilmagem de 2012, protagonizada por Juliana
Paes.
Na televisão, sua presença em trilhas sonoras se deu quase
que ano a ano. Alguns dos principais folhetins da teledramaturgia brasileira
associaram personagens à sua voz, como “Dancin’ Days”, “Água
Viva”, “Mulheres de Areia”, “Torre de Babel”,
“Porto dos Milagres”, “Mulheres Apaixonadas”,
“Celebridade”, “Senhora do Destino”, “Paraíso
Tropical” e, mais recentemente, “Os Dias Eram Assim” e
“Amor de Mãe”.
Em “Vale Tudo”, foi escolhida para o tema de
abertura, “Brasil”. Nela, cantava a revolta reprimida durante os anos
de ditadura que ainda não estavam distantes o suficiente -e que peitou
ferozmente . “Brasil, mostra a tua cara”, urgia diante das rápidas
imagens que capturavam biomas, bichos, manifestações, festas, traumas, prédios.
Completa, em sua forma humana, Gal Costa deve fazer uma
última aparição nas telas. Sophie Charlotte encarna a cantora na cinebiografia
“Meu Nome É Gal”, que Lô Politi e Dandara Ferreira já gravaram e que
levarão aos cinemas no ano que vem.