Autora debate fake news e usa Jade Picon para fisgar jovens 

Written by on 8 de outubro de 2022

Uma maranhense chamada Brisa decide cruzar o país para
encontrar seu amado no Rio de Janeiro. Antes de embarcar no ônibus, a mulher é
cercada de pessoas furiosas que a acusam de ser uma sequestradora de crianças.
Confusa e amedrontada, ela foge e entra num porta-malas qualquer. É o carro de
Oto, hacker que foi ao Maranhão cumprir uma missão secreta.

A trama, que parece de filme de ação, na verdade
dá o pontapé em “Travessia”, novela das nove da Globo escrita por
Gloria Perez. O folhetim substituirá “Pantanal” a partir desta
segunda-feira, dia 10.
Brisa, vivida por Lucy Alves, vai ser vítima de
deepfake, técnica de inteligência artificial usada para criar vídeos falsos em
que rostos e vozes originais são substituídos pelos de outra pessoa. A
expressão facial é inserida de maneira realista e o áudio é criado com os
mesmos sotaque, timbre e velocidade da voz.

O rosto de Brisa aparece no corpo de uma criminosa
num vídeo que começa a viralizar bem quando ela vai para a rodoviária. Ali, a
maranhense é reconhecida e acossada por um bando de estranhos.

Na vida real, há celebridades que já passaram por
algo semelhante. O rosto de Anitta, por exemplo, foi inserido num vídeo
pornográfico que se espalhou pela internet alguns dias depois de ela ter
declarado apoio à candidatura de Lula. O próprio rosto do ex-presidente, aliás,
e também do seu rival, Jair Bolsonaro, são usados em vídeos com deepfake,
montados geralmente com a intenção de espalhar notícias falsas sobre os
políticos.

Pantanal: José Leôncio morre? Saiba o final da novela aqui

Gloria Perez é conhecida por misturar dramas
contemporâneos com temas espinhosos. Em “Travessia”, quer falar dos
conflitos que surgem por causa da internet. “Fake news, a velha fofoca,
agora turbinada em alcance, é apenas uma das possibilidades”, escreve à
reportagem por email.
A dramaturga lança a novela em meio a uma
polêmica. Ela curtiu um tuíte favorável a Bolsonaro, o que gerou controvérsia
na rede. Em entrevista à Folha, no último dia 27, disse se sentir patrulhada.
“É cada uma! Curti e vou curtir qualquer post que defenda a liberdade de
expressão. Ponto.

Nunca declarei voto”, afirmou, sem prosseguir no tema.
Questionada sobre a relação entre o tema do
folhetim e as polêmicas que envolvem o presidente, a autora preferiu ficar em
silêncio.
Outra controvérsia que rodeou
“Travessia” foi a escalação de Jade Picon para um dos papéis da
novela. Mais conhecida por ser influenciadora digital e ex-BBB, ela nunca
trabalhou como atriz. Mesmo assim, vai estrear direto no horário nobre da
principal emissora de TV do país.

Picon e a Globo receberam uma avalanche de
críticas por causa disso.
O burburinho foi tanto que o sindicato da área
precisou agir e a impediu de continuar no elenco da novela. Levou um mês até
que a entidade autorizasse a participação de Picon, com a condição de que ela
tivesse 5% de seu salário descontado, segundo Hugo Gross, presidente da
entidade que reúne artistas.
“Independentemente do caminho que escolhesse
trilhar, eu teria críticas”, diz Picon enquanto é maquiada num camarim do
Projac, no Rio de Janeiro, antes de ir para o set de gravação.
“Pantanal” foi um sucesso nas redes
sociais e virou fenômeno jovem.

Para fisgar a juventude em
“Travessia”, Perez apelou para o poder de Picon, que tem 21 milhões
de seguidores no Instagram, muitos deles adolescentes e crianças. Ela afirma
que foi estratégia. “Quando a gente lança um rosto novo é pensando em
trazer um frescor para a novela.”
Na trama, Picon vive Chiara, uma menina rica e
mimada, filha de um grande empresário chamado Guerra, papel de Humberto
Martins. Ari, interpretado por Chay Suede, viaja para o Rio de Janeiro antes de
seu casamento com Brisa, onde conhece Chiara.

Eles começam a se relacionar.
“Em 30 minutos de teste, já soube que ela
seria atriz”, diz o diretor Mauro Mendonça Filho, que é só elogios à
performance dela.
A reportagem acompanhou gravações com Lucy Alves e
Romulo Estrela, que vive Oto, o hacker. Na trama, depois de se encontrarem
quando Brisa está fugindo, os dois partem juntos para o Rio de Janeiro. Em
clima de tensão e desconfiança, param para descansar num quartinho de beira de
estrada.
Mendonça Filho dirige as cenas do motel num
cenário erguido dentro do Projac.

Quando Alves e Estrela estão posicionados, o
restante da equipe se cala, e os dois começam a atuar. Depois de vários
“corta”, a gravação finalmente dá certo. Estrela ri, aliviado.
“Nosso set é um caos”, diz.
Para o ator, estreante numa novela das nove,
“Travessia” acerta ao jogar luz sobre o tema fake news. “A gente
tem que combater as notícias falsas para não fazer a escolha errada”, diz.

É a mesma opinião de Alves, que apoiou Lula no
primeiro turno das eleições. “Gloria Perez foi muito assertiva, a novela
está vindo num momento muito importante”, ela afirmava, um dia antes de a
dramaturga curtir o tuíte que exalta Bolsonaro.

Nascida na Paraíba, a atriz diz estar aliviada por
ter sido a escolhida para interpretar uma maranhense. “A gente não via
papéis de nordestinos sendo interpretados por quem nasceu na região. Fica de
verdade assim”, afirma enquanto é maquiada, pouco antes de voltar
apressada para o set.

Numa das cenas, Alves precisa ir para debaixo de
um chuveiro ligado. A preparação é meticulosa. Mendonça Filho demora vários
minutos avaliando o cenário, as lentes das câmeras e a posição da atriz.

Quando ele dá o aval, Alves avança para o jato de
água. No último segundo, o diretor percebe que tem algo errado e tenta
interrompê-la, mas é tarde demais -o cabelo de Alves já está encharcado. O
diretor respira fundo, reclama sobre um pedaço qualquer do cenário e pede para
secarem o cabelo dela.

Em meio à confusão das gravações, ele diz que
“Travessia” o fez refletir sobre o mundo virtual. “Pensava que
devia existir uma regulamentação das redes sociais feita pelo governo. Mudei de
opinião. Agora acho que a liberdade que existe na internet não pode ser
cerceada jamais.”

“Travessia” é a primeira novela das nove
desde “Amor de Mãe” que vai ser escrita aos poucos, conforme os
capítulos forem lançados. Isso significa que a percepção do público pode
influenciar os caminhos que Perez vai seguir. Para Estrela, é aí que mora o poder
de uma trama das nove -unir os brasileiros, hoje divididos, para debater a
mesma história. “Essa é a beleza de fazer novela.”


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